Estranho
acordar naquele lugar, paredes novas para seus olhos e para seus outros
sentidos também. Texturas, cheiros, sons, tudo diferente, novidades. Há anos
planejava, há anos visualizava-se dentro de uma nova casa e agora, de repente,
havia aquela com todos os pelos e poros e frestas... Sabia, em algum lugar em
si que, nem aquela, nem nenhuma outra era ou seria sua morada definitiva. Mas
naquela manhã ensolarada acordara ali. E talvez assim houvesse de ser para os
próximos tempos, apostava, caso não houvessem influências muito contundentes do
acaso. Mergulhou-se, passado o estranhamento inicial, em uma viagem particular
de reconhecimento e tomamento de posse.
Não
era grande, nem tão pequeno o sítio. Tinha uma vivacidade e um florescer de
coisas e possibilidades que o encantaram amiúde. Idiossincrasias que lhe caíam
à frente como gotas de uma chuva grossa de verão. Gotas a lhe causarem
surpresas quase infantis, carregadas de frescores orvalhares que degustava
intensamente naquela manhã invadida de sol, antes que o calor impregnado do dia
e do tempo lhas dissipassem.
Somente
não poderia esquecer-se que tudo aquilo era tão quase efêmero quanto o abrir e
fechar de olhos de um piscar. Sabia-o assim pelo simples fato de que a morte
não escolhe agendas e nem propaga cadernetas de fianças. Muito menos ela manda
recados e quando ela chega, pode a noiva estar ainda no meio de sua especial
maquiagem, ou o grande artista no início de sua principal obra, que ela
interrompe tudo e os leva sem nenhum arrependimento ou menção de relevar. Então
não poderia esquecer-se. Para não criar a ilusão da paixão avassaladora. Para
não morrer antes do tempo da morte. Poderia, sim, amar, mas sem qualquer apego.
Sabendo-se dono do etéreo. Sabendo-se enamorado e ao mesmo tempo livre.
Aquelas
paredes, portanto, podia enchê-las de cores, de massas, rabiscos e ainda assim
estas tatuagens não o acompanhariam quando de sua partida rumo à próxima
moradia, seriam apenas lembranças vagas do tempo gasto a impregnar de impressões
de si a já então finda morada. Ponderou muito, antes da primeira interferência
a lograr. Decidiu, por fim, acender a luz - mesmo em dia claro - pois, avaliou
ser prudente aperceber-se também das rachaduras, dos quebrados do assoalho, das
fiações expostas, dos esconderijos dos insetos peçonhentos. Não sentiu nem
angústia, nem ansiedade diante do exposto, sentiu simplesmente amor, cruamente
amou. E então foi tomado por uma imensa alegria porque intentou e conseguiu
aquele amor. E aquele amor o fez saber-se livre daquela e de qualquer outra
moradia que viesse a ocupar. Pertencia e ocupava aquele tempo e aquele lugar
enquanto ali estava e somente enquanto ali estava, eis sua liberdade.
E como
segundo ato resolveu correr e testar todos os limites e cercas dali. Por entre
jardins, árvores, espinheiros, gramas rasas, caminhos de britas, correu e
constatou que tudo era muito maior do que supunha. Extasiou-se daquela corrida
prazerosa e respirou-a cada segundo que pôde e conseguiu. Só parou no mergulho
no rio, de olhos bem abertos e pulmões invadidos de ar. Banhou-se demoradamente
para se lavar e para que as impressões daquele magnífico dia se espalhassem
para o curso devido.
Naquela
noite, em suas reflexões, viu-se acordar findo e adormecer-se deus.
Mário Deganelli.