À mesa
Naquela mesa, posta diferente neste dia, de modo a acompanhar o formato
do salão, estavam gentes de toda espécie, de todas cores, de todos cheiros, de
todas vivências. Mas a chegada daquele casal maltrapilho, mijado, fedido e com
palhas nos cabelos sebentos, trazidas da rua do último sono dormido
incomodaram... os preconceitos suscitados entre os que deveriam ser seus pares
também chamou a atenção. Incomodavam porque traziam em si, apesar do
maltrapilho e da sujeira, uma vivacidade e um carinho de casal que transbordava
pela mesa e ensopava o colo ressecado dos participantes daquele almoço. Um
princípio de discussão querido por um, um chamar de atenção tentado por outro e
o casal, impávido, respondendo com colheradas oferecidas na boca
carinhosamente.
A proposta, trazida como sobremesa por D.Maria e o pessoal do
consultório de rua, foi simples:
- Ao som do dedilhado no violão, será lido um poema de Cecília Meireles
intitulado “o último andar”.
Ouçamo-lo:
O último andar
No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.
Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.
De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.
Logo após a leitura, mais som de violão, e após, mais leitura do mesmo poema e após, mais violão... tudo orquestrado pelas mãos habilidosas de D.Maria, que queria que prestassem atenção à escuta... na última vez o tocador acompanhou seu dedilhado com um assovio e outro assovio o acompanhou e surpreendeu desafiador os expectadores... Ivaldo era o nome daquele “Raul-seixaniano D.Quixote” que ao tomar o violão pra si protagonizou um belíssimo show com sambas-canções, romantismos e por vezes alguma malandragem do Bezerra da Silva... fez daquele lugar sua saudosa maloca e na sua maluquice não quis saber quem eram todos, não discriminou e ensinou-nos a também não discriminar. O público, ávido por aquele néctar, cantou junto, batucou, empolgou e se apossou daquele momento como nunca antes...
Dna.Maria, que sacou de um livro porque por acaso sua estante de prateleiras havia caído e por acaso escolheu “Cecília”, por acaso viu neste acaso a força transformadora imensurável da arte.